A fome tem nome. Por detrás das estatísticas estão as pessoas, com seus corpos, suas necessidades, seu estado emocional. Por detrás das estatísticas tem mães, pais, avós, irmãos, preocupados, tantas vezes desesperados, por não conseguirem suprir as necessidades básicas de suas famílias no seu dia a dia.... E essas pessoas têm endereço. Elas estão mais concentradas nas periferias das grandes cidades, uma periferia geográfica, que também é social, que também é existencial.

A fome envolve uma dimensão também psicológica, emocional e de autoestima. Ninguém gosta de dizer que está passando fome, as pessoas se sentem envergonhadas. Também é uma vergonha para os que comem, ao ver um semelhante em tal estado de necessidade, uma necessidade primária que não deveria acontecer. A existência de pessoas com fome é um questionamento a todo um tipo de sociedade, como ela se organiza, como ela se estrutura, e que lugar social nós ocupamos nela.

O Brasil de hoje apresenta, segundo a FAO, 61 milhões de pessoas com insegurança alimentar, isto é, podem comer hoje, mas não sabem se comerão amanhã. Desses, 15 milhões em estado de fome crônica, isto é, não tem os alimentos e nutrientes suficientes todos os dias para estarem alimentados. Pior, em 2015 o Brasil saiu do mapa da fome, segundo a FAO. Retorna a esse mapa em 2018, após o desmonte das políticas públicas de combate à fome do governo anterior.

A fome é uma expressão de poder, de um determinado tipo de poder. É uma escolha política promover ou superar a fome, tanto a humana quanto a animal.

É nesse sentido que se faz fundamental o item seguinte desse texto. Quem decide sobre promover ou superar a fome no Brasil? Por que em alguns governos anteriores caminhávamos para superar a fome, a miséria absoluta, ao ponto do Brasil sair do mapa da fome mundial, e qual o porquê de agora retornamos a essa tragédia de forma tão abissal?

A área cultivada no Brasil é de 64 milhões de hectares. Porém, a maior parte concentrada em grandes extensões pertencentes ao agronegócio. O agronegócio é um produtor e exportador de comodities agrícolas, mas não é um produtor de alimentos. Esse tipo de atividade precisa de muito espaço e não sabe conviver com outras formas de vida. Então, para existir, precisa suprimir as florestas, a vegetação nativa, precisa expulsar as comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas, tradicionais, assim por diante. Ao suprimir as florestas, elimina os espaços dos animais selvagens, rompe a cadeia alimentar, elimina a biodiversidade, erode os solos, contamina as águas e solos com seus venenos e alcança a produção que objetiva em seus métodos. Ao eliminar o habitat dos animais, promove a fome dos animais. Ao ocupar o espaço de produção alimentar, produz a fome humana. Tanto é que, nesse momento, com toda produção que o agronegócio diz ter, temos os números assombrosos de 61 milhões de pessoas em insegurança alimentar, grande parte em fome crônica. Quanto mais avança o agronegócio, mais avança a fome! É um fato!

A agricultura camponesa pressupõe a aliança com a natureza, o agronegócio pressupõe a guerra contra a natureza. Por isso uma preserva, a outra destrói, ainda que o discurso seja sempre de atividades ambientalmente sustentáveis de ambas.

Fundamental na segurança e na soberania alimentar são os territórios das comunidades tradicionais, como as indígenas, quilombolas, fundos e fechos de pasto na Bahia, e outras. O território é um espaço de vida, não só de produção. ...Acontece que a soberania territorial das comunidades é sempre agredida pelos interesses do capital, com sua propriedade privada de tipo capitalista, que mira a terra como espaço exclusivo de produção e lucro, quando não de mera reserva financeira. ...Os espaços comunitários, de produção e reprodução da vida, não cabem na mentalidade fechada e individualista da sociedade ocidental. Por isso, para essa mentalidade, essas comunidades representam o atraso, o obstáculo a ser derrotado para implantarem seus projetos monoculturais e predadores.

Esses territórios que produzem alimentos, clima, biodiversidade, chuvas, culturalidades, peixes, alimentos, extrativismo de sustento da vida, precisam ser protegidos e incentivados. Nem sempre é produzir, muitas vezes é extrair. Ainda mais, certas atividades extrativistas pressupõem a floresta em pé, a Caatinga em pé, o Cerrado em pé, a Amazônia em pé etc. Assim, são também preservadores do meio ambiente, são guardiães ambientais, que prestam serviços a toda sociedade humana e à natureza, ajudando preservar o ciclo das águas, do carbono, a amenidade do clima e a biodiversidade específica de cada bioma.

*Trechos tirados do texto: O EVANGELHO DA FOME por Roberto Malvezzi (Gogó)[1]

https://itellins.org.br/images/2022/CF2023/07_Gogo_Evangelho_da_Fome_ultima_versao.pdf

 

[1] MALVEZZI, Roberto. Graduado em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Membro da Equipe de Assessoria da REPAM-Brasil e da Comissão Especial de Ecologia Integral e Mineração da CNBB. Membro da CPT de Juazeiro-BA. Escritor e Compositor.