Texto de Frei Beto, escrito   23 Fevereiro 2023  Unisinos

  

"A penitência mais significativa, que agrada a Deus e ao próximo, é se empenhar no socorro aos mais pobres. E, se possível, de modo menos assistencialista possível e mais estruturante. É óbvio que dar um prato de comida a quem tem fome é importante, por suprir a mais elementar necessidade do ser humano: alimentar-se. Contudo, melhor que indicar o caminho é oferecer o transporte. Age de modo estruturante quem cede um lote em área de sua propriedade para uma família sem-terra; consegue um trabalho para um desempregado; matricula na escola a criança analfabeta; apoia uma política governamental que beneficia os excluídos etc", escreve Frei Betto, escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Eis o texto:   

Quaresma é um período de 40 dias. Na Bíblia, os números não são aleatórios. Guardam significado. O 7, por exemplo, equivale ao nosso 8 deitado (♾️), símbolo do infinito. Nossos pecados, disse Jesus, serão “perdoados, não apenas sete vezes, mas setenta vezes sete” (Mateus 18,21-22). A misericórdia de Deus é infinita.

Nos textos bíblicos encontramos muitas aplicações do número 40, que simboliza o tempo de Deus. O dilúvio durou 40 dias e 40 noites (Gênesis 7,17). Moisés tinha 40 anos quando feriu um egípcio e se viu obrigado a fugir (Êxodo 2,12 e 15). Antes de receber as tábuas da lei, ele jejuou durante 40 dias e 40 noites (Deuteronômio 9,9). Quarenta anos mais tarde teria liderado a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. A travessia dos hebreus pelo deserto – o êxodo –, rumo a Canaã, teria durado 40 anos (Êxodo 16,35). O profeta Elias “caminhou 40 dias e 40 noites até o Monte Horeb, a montanha de Deus” (1 Reis 19, 8).

Como informa Marcos, após a ressurreição Jesus permaneceu 40 dias em companhia dos discípulos.

A Igreja instituiu a Quaresma – que se inicia na Quarta-feira de Cinzas e culmina no Domingo de Ramos - como tempo litúrgico que precede a Semana Santa e nos prepara para a Páscoa, a celebração da ressurreição de Jesus, a mais importante festa cristã.

Assim como os hebreus demoraram 40 anos para cruzar o deserto após se libertarem da opressão no Egito, e Jesus jejuou durante 40 dias antes de iniciar a sua militância, a Igreja recomenda aos cristãos, nesses 40 dias de Quaresma, assumirem uma postura penitencial.

Penitência não significa reconhecer as culpas. É muito mais do que isso. É fazer a travessia para um compromisso maior com atitudes de solidariedade. Postura amorosa e engajamento de justiça. Por isso, todos os anos, desde 1964, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) lança na Quaresma a Campanha da Fraternidade. A cada ano adota uma motivação temática diferente. Este ano é a fome.  (OBS:  Escrito no ano 2023;  o tema atualmente é Amizade Social)

Dados do governo revelam que temos hoje no Brasil 33,1 milhões de pessoas desnutridas, e 125 milhões em insegurança alimentar, ou seja, comem hoje sem saber se poderão repetir amanhã.

A penitência mais significativa, que agrada a Deus e ao próximo, é se empenhar no socorro aos mais pobres. E, se possível, de modo menos assistencialista possível e mais estruturante. É óbvio que dar um prato de comida a quem tem fome é importante, por suprir a mais elementar necessidade do ser humano: alimentar-se. Contudo, melhor que indicar o caminho é oferecer o transporte. Age de modo estruturante quem cede um lote em área de sua propriedade para uma família sem-terra; consegue um trabalho para um desempregado; matricula na escola a criança analfabeta; apoia uma política governamental que beneficia os excluídos etc.

Quaresma é também tempo de reabastecimento espiritual: oração, meditação, reflexão da Palavra de Deus, leituras espirituais, participação litúrgica. Sem reforçar a espiritualidade corremos o risco de desanimar ou ficar indiferente diante das necessidades do próximo.

Engana-se quem julga que “sacrifício” na Quaresma é apenas deixar de comer carne bovina, suína ou avícola, embora se farte de peixes e outros quitutes. Isso é descarado farisaísmo. Se queremos realmente viver a Quaresma na dinâmica da espiritualidade de Jesus devemos dar um pouco de nós. Do nosso tempo, da nossa vida, das nossas posses.