CPI da Covid – muito aquém da tragédia nacional. Artigo de Plínio de
Arruda Sampaio Jr.





"O relatório aprovado destaca-se pela incongruência entre a gravidade
dos crimes apurados, a superficialidade de suas conclusões e a
inocuidade de suas consequências práticas", escreve Plínio de Arruda
Sampaio Jr., professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e
editor do site Contrapoder, em artigo publicado por A Terra é Redonda,
27-10-2021.



Eis o artigo.


A liderança da CPI da pandemia encerrou os trabalhos em clima de
indisfarçável autocongratulação pelo sentimento do dever cumprido. No
entanto, não há quase nada a comemorar. O relatório aprovado destaca-se
pela absoluta incongruência entre a gravidade dos crimes apurados, a
superficialidade de suas conclusões e a inocuidade de suas consequências
práticas.

A CPI comprovou com farta documentação o que já era evidente.[i] A
tragédia sanitária foi fruto de uma política deliberada dos donos do
poder. Ao colocar o lucro acima da vida, o Estado brasileiro tornou-se
impotente para interromper a livre circulação do coronavírus entre a
população. A subestimação da gravidade da pandemia, o boicote
sistemático às medidas de isolamento social, a sabotagem da compra de
vacinas e a divulgação generalizada de falsos remédios deixaram os
brasileiros à mercê de uma estratégia sanitária criminosa – a imunização
de rebanho.

Para arrematar, as investigações revelaram macabras experiências de
hospitais privados que utilizaram seres humanos como cobaias, bem como
tenebrosos esquemas de corrupção comandados pela alta cúpula do governo
federal envolvendo políticos, militares, líderes religiosos e
empresários. O presidente sabia de tudo. O resultado é a maior tragédia
humanitária da história nacional. Com 2,7% da população mundial, o
Brasil registra 12,2% de todos os óbitos provocados pela pandemia de
coronavírus – o décimo país, entre 178, com maior índice de morte per
capita por Covid-19 do planeta.

O relatório da CPI pediu a responsabilização criminal de 80 pessoas pela
tragédia sanitária e, após muita celeuma sobre o papel da política
sanitária no genocídio dos povos originários, restringiu a acusação
contra o presidente da República ao crime contra a humanidade. Não é
crível, entretanto, que uma barbaridade dessa envergadura – a morte de
mais de 606 mil brasileiros em menos de dois anos – tenha ocorrido sem a
cumplicidade direta e indireta do conjunto das instituições que compõem
o Estado brasileiro e o total beneplácito da burguesia.[ii]

A individualização das responsabilidades políticas e criminais pela
tragédia sanitária é uma iniciativa necessária, porém muito insuficiente
para se chegar à raiz de seus condicionantes sistêmicos, determinados
pelas estruturas históricas da sociedade brasileira. A CPI ficou apenas
na superfície. A participação decisiva da burguesia no holocausto ficou
oculta. As principais perguntas ficaram sem respostas.

Por que o poder legislativo demorou mais de um ano para abrir uma
investigação sobre o descalabro sanitário que vitimava a população?

Por que os senadores pouparam a base política do governo Bolsonaro,
isentando de qualquer responsabilidade o Centrão e os partidos militar,
evangélico e empresarial, que militaram ativa e ostensivamente contra
uma política sanitária baseada na defesa da vida?

Por que a CPI não investigou o silêncio do Ministério Público diante de
crimes que saltavam à vista?

Por que nenhuma linha foi escrita sobre as políticas sanitárias dos
governadores e prefeitos, que, em essência, mesmo que em dose menor,
também foram integralmente subordinadas aos imperativos da economia?

Por que nada foi dito sobre o efeito da política neoliberal no
enfraquecimento do Sistema Único de Saúde e no comprometimento da
autonomia sanitária do país?

Por que não se investigou a fundo a interação entre mortes por Covid-19
e segregação social, quando há muito se sabe que a sindemia constitui um
fator decisivo na definição do estado de saúde das pessoas:[iii]

Por que não há sequer menção ao papel do imperialismo sanitário na
tragédia brasileira?

Ruim com a CPI, pior ainda sem ela. A investigação do Senado foi
fundamental para conter o descalabro sanitário do governo, acelerar a
campanha de vacinação contra o coronavírus e conscientizar a população
para a importância de medidas não farmacológicas como meio de proteção
contra a Covid-19. Serviu também para explicitar a natureza reacionária,
obscurantista, facínora e corrupta do governo Bolsonaro. Os documentos e
depoimentos sobre a política sanitária genocida do governo Bolsonaro
ficarão para sempre como um registro irrefutável da ruptura total e
definitiva de qualquer nexo moral da burguesia com as classes
subalternas.

Completamente desvinculada do movimento de rua pela deposição de
Bolsonaro, a CPI tornou-se uma ação meramente formal que, na melhor
hipótese, tem valor simbólico. As mesmas forças políticas que afirmam
que o país é presidido por um homicida recusam comprometer-se de corpo e
alma com sua deposição. Sem implicações políticas e legais que possam
interromper a continuidade da camarilha
militar-miliciana-teológica-empresarial que comanda o executivo
nacional, as conclusões da investigação ficarão reduzidas a uma
condenação moral, sem maiores consequências práticas, salvo o maior
isolamento político de Bolsonaro e seu inexorável desgaste eleitoral.

Posto em perspectiva histórica, o relatório dos senadores cumpre a
função compensatória de prestar alguma satisfação à população pelo
descalabro sanitário e expiar a culpa das classes dominantes pelo
massacre das classes subalternas. Ao transformar Bolsonaro em bode
expiatório do morticínio em curso, a CPI isenta as instituições, os
agentes políticos e a burguesia de qualquer responsabilidade pela marcha
macabra do coronavírus na sociedade brasileira.

Na maior desfaçatez imaginável, o governo recebeu o relatório com uma
gargalhada. Quem semeia vento, colhe tempestade. O maior crime
humanitário da história moderna do país não ficará impune. O trauma do
massacre sanitário reverberará ao longo dos tempos. Nenhuma vida perdida
será esquecida. Ninguém será perdoado. Todas as responsabilidades por
ações ou omissões – individuais, institucionais, políticas e de classe –
serão um dia cobradas.



Notas


[i] A integra do relatório da CPI encontra-se aqui.

[ii] Pela subnotificação estimada de 15 a 20% dos óbitos por Covid-19,
provavelmente mais de 700 mil vidas foram perdidas pela pandemia de
coronavírus.

[iii] Veja aqui e aqui.